Sempre houve violência escolar, a diferença é que, hoje, ela se tornou despudorada



Lembrar nossas histórias serve para mostrar as diferenças. Temos uma história colonial de violência e que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-históricas, amnésicas e presentistas, como de algumas psicologias de dominação. Ao invés disso, o que é da ordem da violência colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma abordagem totalmente histórica e, por isso, decolonializada, que busca recordar a violência com a qual fomos constituídos.

Como disse Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma memória histórica clarividente, para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e esmagou o nosso povo”. Essa memória da violência é indispensável e podemos cultivar por meio da psicanálise. Mas essa lembrança não pode ser como qualquer coisa, ela tem que explicar a maneira como a violência atuou no sujeito constituindo-o ao danificá-lo.

Nossa subjetividade danificada pela violência colonial é o produto de complexas operações inconscientes, como bem demonstrou Frantz Fanon em Peles negras e máscaras brancas pois a “internalização” ou “epidermização da inferioridade” foi o zênite da expressão dessa violência. É também o caso de Anibal Quijano que chamou de “aspiração” em seu livro Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, um desejo de “colonialismo interior” em substituição ao “exterior”, isto é, a sedução que vem depois da repressão.

A violência é dissimulada, suas ilusões podem desaparecer no tratamento psicanalítico. Como? Descolonizando o Outro, perdendo o seu lugar que você concedeu no olhar colonial do Outro. O lugar que eu julguei ter no desejo do Outro.

 

A violência simbólica nas escolas e o despudor

As escolas sempre foram um lugar violento porque dizem da própria violência simbólica em que o Brasil foi construído. Aquilo que chamamos de Brasil tem por base uma história tóxica e de relações abusivas, isto é, coloniais. Com séculos de colonialismos, ao menos duas modalidades ordinárias de escravidão e dois regimes autoritários, a própria história da violência de hoje agregou outras formas como crimes, homicídios, vandalismos e consumismos. Por consequências, as fronteiras da violência simbólica se tornaram opacas e borradas de modo que seus efeitos se generalizaram e se capilarizaram em sintomas. Elas são da ordem do pulsional que se utiliza da intolerância contra a diferença para instalar a incivilidade. Ora, se é pulsional, então, o inconsciente também é atravessado pelas relações desiguais de poder cujo significante se desliza dependendo da hegemonia daquele período.

Os processos históricos marcaram esse deslocamento, ou seja, três mudanças no S1 do discurso do mestre. Explicando apenas de forma superficial, S1 são significantes que organizam e comanda o discurso. É esse significante que comanda o gozo de cada época. Se há mudança no S1, então, há mudança em todo discurso.

Entre março de 1549 com a chegada de jesuítas no Brasil com o padre Manoel da Nóbrega até 1920, a palmatória era o zênite simbólico da prática educativa. No Brasil colônia, ela era utilizada para punir os indígenas no processo de catequização. Já no Império, foi instituída como instrumento de punição oficial nas escolas públicas. Portanto, o S1 promovia um gozo fálico naquele que detinha seu monopólio, isto é, um corpo colonizador. Educar era sinônimo de punição.

Mesmo com as mudanças na legislação educacional e a valorização de métodos pedagógicos mais modernos, a violência simbólica continuava sob a forma de punição para educar. Essa maneira de entender a educação se ampliou em outras formas mais graves e sutis de violência. Vandalismos e práticas de agressões contra o patrimônio público escolar foram se agravando cada vez mais. Era a reação contra o sistema educacional punitivo.

Os primeiros atos de depredação contra o patrimônio escolar nos informam que, a partir da década de 1930, o país passou por grandes transformações políticas e sociais. Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista de São Paulo, quando diversas escolas foram incendiadas e destruídas na capital paulista e em outras regiões do estado. Os prédios escolares foram alvo por representarem a presença do Estado ou, especificamente, o dono que estava perdendo a palmatória. Outro episódio sintomático aconteceu em 1953, quando estudantes do Ginásio Nacional do Rio de Janeiro (atual Colégio Pedro II) promoveram uma manifestação contra o aumento do preço da passagem de ônibus. O protesto acabou em confronto com a polícia e em atos de vandalismo contra a escola teve suas instalações depredadas.

Com clareza o significante S1 do campo escolar deslizou. Tomou forma perceptível de desencadeamento como se fosse um desengate gradativo do Outro, esgarçando os vínculos afetivos. O afeto que se vinculava a imagem escolar como lugar de punição, é tomada agora como deflagração de uma violência simbólica contra a escola. Assim, os sujeitos poderiam estar se desidentificando da posição de gozo do Outro.  Com o passar do tempo e as repetições de depredação escolar, a figura da escola foi jogada numa errância por um prazer perverso.

Passando algumas décadas o S1 retorna com a violência escolar não mais com a palmatória, mas como uso de uma ferramenta de propaganda política e de controle social. O período cívico-militar fixou na educação um instrumento fundamental para a formação de uma sociedade disciplinada, supostamente a renúncia pulsional, obediente e comprometida com os valores e interesses do Estado. Seus cidadãos fizeram uma identificação com esse Pai ao invés de matá-lo. Todos eram obsessivamente vigiados e imaginariamente punidos.

Foi nesse período que o Estado instituiu uma série de reformas educacionais que restringiram a autonomia das escolas e dos professores. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1971, por exemplo, determinou que o ensino deveria ser "conforme os princípios e objetivos da nação", o que significava que o conteúdo das disciplinas deveria estar alinhado com a visão de mundo do Estado. Mas quem era o Estado se não o que Georgio Agabem em Subjetivação e dessubjetivação dizia que o Estado é uma máquina de descodificação que embaralha e dissolve as identidades clássicas. Ao mesmo tempo, uma máquina de recodificação jurídica das identidades dissolvidas faz dessubjetivação e ressubjetivação. O canalha ocupou o Estado porque experimentou a castração, mas prefere escolher o que aprendeu na análise para gozar do outro.

A psicose clássica, conforme descrita por Lacan, é caracterizada pela presença ou ausência do operador simbólico do Nome-do-Pai, que representa a norma edipiana e é essencial para a integração do sujeito no universo simbólico. A falta desse significante pode levar a uma foraclusão, que significa a rejeição do significante pelo inconsciente e sua emergência como delírios e alucinações.

Analisando o contexto histórico, é possível perceber como a imposição de uma visão de mundo por meio das reformas educacionais e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pode ter contribuído para a fragilização da estrutura simbólica dos sujeitos. Ao limitar a autonomia das escolas e dos professores, o Estado acabou por impor sua visão de mundo como a única válida, o que pode ter levado à falta de integração do sujeito no universo simbólico.

Além disso, a máquina de recodificação jurídica das identidades dissolvidas, como descrita por Georgio Agamben, pode ter contribuído para a dessubjetivação e ressubjetivação dos sujeitos, o que pode levar a uma perda de identidade e a uma maior vulnerabilidade à foraclusão do Nome-do-Pai.

Dessa forma, é possível estabelecer uma relação entre as ideias apresentadas por Lacan e as mudanças no sistema educacional, sugerindo que a falta de autonomia das escolas e dos professores pode ter contribuído para a fragilização da estrutura simbólica dos sujeitos e, por consequência, para a emergência de transtornos psicóticos onde a própria cultura julga, condena e joga no sistema prisional. Essa cultura produz descompensados em massa!

Cadeira n ° 15, Patronímica de Farias de Brito.

* Texto elaborado a partir do _Evento realizado na Cidade das Artes - Barra da Tijuca - RJ pelo Projeto Interlocuções coordenado pela Psicanalista Gilda Pitombo.

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