O mais-de-gozar do sagrado: Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza



Em Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, pululam múltiplas inquietudes. Dentre elas, várias vozes dialogam na complexidade da trama. Auscultá-las tão de perto é arriscado. A revisitação não é inovadora, mas os riscos de encontrar possibilidades que se articulem no bojo da Psicanálise e da Religião são inevitáveis. Rememora uma temática moebiana espinhosa como aquela cena da água espirrada do corpo de Jesus que curou a chaga de Longuinus. Assim como os cristianismos se soergueram nos discursos da falta de um corpo morto, o Grande sertão é cheio de entraves. Como certa vez disse Antônio Candido “Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar”.

Liberdade de inventar traduzido por novos ciframentos do já-dito, mas agora com novas roupagens ainda não capturadas. Ao lado dos cristianismos, Grande sertão desdiz a cada nova leitura que não cessa e vai além das próprias representações. Munido de tempo e linguagem tanto Diadorim “minha neblina” como as teologias místicas ensaiam dissipações. É como se no percurso do autoerotismo ao encontro do Grande Outro algo do nosso desejo fosse barrado e produzissem circuitos. Nesse sentido as conversas entre Gianni Vattimo e Jaques Derrida apontaram que a palavra religio tem que permanecer intraduzível, já que pronunciar palavras solenes em atos rituais equivalem a respondere. Como veremos mais adiante, Riobaldo responde de forma singular como defesa contra o Real utilizando o recurso ao saber que é a própria tentação, referindo-se as atitudes de Deus que ataca, se diverte e não desperdiça os efeitos do Pai REAL.

São expressões distintivas entrelaçadas em estruturas clínicas que atuam na incidência sob seu próprio recalque originário. Esses entrelaçamentos são os “nós” de Riobaldo que operam nas lógicas de separação e alienação, sempre mediado pela sua fantasia. Nesse mecanismo, não existe encontro direto com o objeto por conta das angústias insuportáveis. Entretanto, é como se o sujeito homo religiosus, com referência a Mircea Eliade, buscasse a tentação de burlar esse mecanismo tamponando o objeto de satisfação. Será que as invocações de Riobaldo traduziu os efeitos do Pai REAL suplantando a separação entre o sujeito e o objeto restituindo o seu gozo?

Grande Sertão: Veredas apresenta grandes temas, vaticina personagens mais importantes, menciona os lugares mais significativos, prenuncia o final, reflete sobre o ato de narrar e, em especial, o sentido da vida de Riobaldo. Deparamo-nos com um-caótico que aos poucos se organiza na di-visão. Riobaldo se candidatou a um fóbico que olha até certo ponto diante desta di-visão, produzida pela castração, isto é, uma recusa que deixa uma fresta, uma abertura pela produção dos sintomas via sofrimento que vai tentar limitar o imaginário que aparece rasgado. A presença dos sintomas de Riobaldo sinalizou que o objeto não foi capaz de envelopar a castração, mas se encontrou no mais além da linguagem, como veremos a seguir.

Riobaldo conheceu Otacília durante a saída de Guararavacã do Guacuí, quando os jagunços, fugindo dos soldados e querendo vingar-se do Hermógenes, se dirigiam ao encontro de Medeiro Vaz. Nessa antecipação do ocorrido na fazenda Santa Catarina havia a lembrança de Nhorinhã e o trágico final de Diadorim.

Explicando as experiencias adquiridas no início de sua jornada, Riobaldo conta para Nonata:

“O senhor... Mire veja! o mais importante e bonito, do mundo, é isto! que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas ― mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. E o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa! o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro ― dá gosto! A força dele, quando quer ― moço! ― me dá o medo pavor! Deus vem vindo! ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho ― assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois! um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. ― Amanhã eu tiro... ― falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba! no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí! da faquinha só se achava o cabo... O cabo ― por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está! Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...”

 

Riobaldo na sua di-visão de mundo explicou que as pessoas não são iguais porque são sujeitos inacabados por um Deus traiçoeiro. Mas essa traição não é depreciativa ainda que produza um fascínio de “medo pavor”. Ora, Riobaldo açambarcava um valor paradoxal atribuído ao sentido figural lyotardiano em Deus quando percebeu que o líquido no qual caiu sua faquinha corroeu e sobrou apenas um cabo de madeira, já que não era de metal. Faquinha essa investida libidinalmente e, portanto, com perdas de gozo. Portanto, são nesses restos que os sujeitos se fixam, ou seja, são certos encontros com a castração que possibilitam o acesso a um gozo – o fálico. Mas se há uma pregnância desse significante na cultura, então, o gozo fálico é uma satisfação que o sujeito acessa e se engaja nas representações supostamente garantindo certo lugar mais estável possível. Em meio ao sofrimento e desventuras do sertão, Riobaldo se arvorou em algo-a-mais no complexo de seu discurso sobre Deus traduzidos pelo retorno ao Pai REAL, isto é, ele não existe, é anterior a cultura e estava miticamente no recalcamento originário freudiano por suposto detentor do falo. É um mito das origens que inscreve a lei simbólica. Acontecimento que fura e esvazia, portanto, o Pai REAL é o agente da castração que se destina a ser mascarado e prescindiu a natureza do ato da castração. Sua posição impossível pode ser imaginada como um privador e traiçoeiro. Então, o Pai REAL é o efeito da linguagem, ele somente fura e faz (EN)corporação. Se enxugarmos todos os imaginários encontraremos o Pai REAL.

Nessas condições, Riobaldo elaborou no pai morto a fundação da alteridade que impediu o UM na sua relação com a faquinha perdida para sempre. Operou um lugar de metáfora possibilitando artifícios significantes para o sujeito se colocar entre ele o outro. Mas isso não se faz sem a pulsão significante como apelo ao Pai REAL, isto é, uma invocação. A fobia de Riobaldo não é a metáfora do pai, porque não se trata da substituição do significante. A faquinha não é uma gambiarra, ela é um vazamento, um retorno ao Pai REAL da sua primeira identificação numa ENcorporação que fundou o simbólico de Riobaldo. Isso significa que faz corpo, um corpo místico por causa do enigma do desejo traduzido na linguagem que se apresentou atacando e se divertindo. Na falta de borda, a fobia de Riobaldo foi uma defesa contra a angústia de ter perdido seu gozo e parando seu transbordamento.

Entretanto, na sua relação com o delírio o gozo fálico adquiriu bordas. Algo do Real é descoberto frente à linguagem, indicando insuficiência no tudo dizer. Para sustentar o indizível da linguagem de forma lógica, Lacan pensou essa satisfação que prescinde dessa lógica fálica indo além da cultura, mas que incide sobre ela. É como se algo além se colocasse num fora-dentro da cultura. Riobaldo se referenciou ao sagrado para suportar a perda que estava originalmente investida. Logo, existe “algo-a-mais” que produziu diferença e marcou uma posição. Favoreceu um gozo que prescindiu da norma fálica porque nem todos os sujeitos se posicionam falicamente no mundo, isto é, faz com que o sujeito encontre satisfação num movimento de entrega consentida ao Outro na direção da dessubjetivação. Movimento onde o sagrado retalhou o objeto de caráter erógeno masoquista primordial, isto é, um gozo Outro.

Mas o que há “a mais” no gozar? É própria dimensão de satisfação parcial que não tem objeto específico e encontrado a partir dos circuitos pulsionais do corpo. É do corpo do sagrado, necessário em ter uma perda muito grande de satisfação para que se possa entrar numa certa organização do sujeito. Isso que cai enquanto satisfação é o que vai mobilizar o sagrado na constituição do desejo de Riobaldo. Não há renúncia ao gozo que não se pague com um acréscimo, um mais-de-gozar quando Deus ataca bonito, se divertindo, e não desperdiça.

No campo do moterialism, existe uma perda de gozo quando o trabalhador realiza alguma coisa. No seminário 16, Lacan associou seu conceito de mais-de-gozar à mais-valia de Marx. Nesse ponto de seu ensino, o objeto a se constituiu da apropriação da mais-valia, em sua lógica. Na mais-valia, Lacan aplicou no avesso a ideia de mais-de-gozar, de modo a fazê-los homólogos, e não análogos, porque o objeto a e a mais-valia obedecem à mesma lógica. A partir das racionalidades de Oskar Pfister e Wilfred Bion e sob o efeito do discurso do sagrado, será que Riobaldo substituiu o valor de uso da faquinha pela figura de Deus na tentativa de lidar com seu desamparo? Será que Riobaldo divinizou a alteridade escamoteando a falto no Outro? Que falta é essa que precisa ser encoberta num contexto em que o “homem do sertão é antes de tudo um forte” como dizia Euclides da Cunha?

Cadeira n ° 15, Patronímica de Farias de Brito.

Texto elaborado a partir do Encerramento das atividades do Fórum do Campo Lacaniano de Nova Iguaçu - RJ, Temática da Mesa I: Psicanálise e Religião .

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