Discurso de posse de Amaury Pereira Muniz



A voz do mestre

INTRODUÇÃO

Há 20 anos autoridades federais, estaduais· e municipais, autoridades da Fundação Getúlio Vargas, seu Presidente Dr. Luiz Simões Lopes, docentes e funcionários do Colégio Nova Friburgo ouviram uma aula ministrada pelo Professor Lourenço Filho com a qual se inaugurava o Ginásio Nova Friburgo que, anteriormente, fôra sonho ardente e depois planejamento gigantesco, arrojado, corajoso, seguido de trabalho metódico mas febril e irrequieto, porque procurando sempre superar-se na busca de melhor solução...

Há 20 anos uma equipe começou o trabalho de implantação de um colégio com fé e entusiasmo. Fé que impediu o desânimo diante das dificuldades que uma obra ciclópica e pioneira sempre traz e assim era a que se iniciava; entusiasmo que permitiu o treinamento dos professores em curto espaço de tempo para a aplicação de um método didático definido e nôvo e para o qual se exigiria dêles preparo técnico e dedicação aos jovens estudantes.

Há 20 anos um elemento - único daquele grupo pioneiro - persiste fiel ao seu ideal e dedica-se com o mesmo entusiasmo, a mesma fé, enriquecido então pela experiência e pelo amor à obra que se iniciara com aquela aula proferida por um grande mestre...

Agora êsse elemento recebe, com honra e alegria, a distinção dos cidadãos da terra que já sente como sua: foi eleito para a Academia Friburguense de Letras.

2. A voz do Mestre

A vida é uma preferência que se prolonga e, segundo uma graciosa imagem de Renan, mesmo depois de mortos, no paraíso celeste, reunimo-nos em grupos harmônicos de acôrdo com nossos ideais e afinidades morais. Se assim é, ao sentar-me entre os acadêmicos da "terra dos cravos" sob o patronato de José Veríssimo, crítico literário, historiador e professor - e é por ter sido José Veríssimo professor que não me poderia sentir melhor - inevitàvelmente em tudo e em todos buscarei o ideal do educador. A voz que de mim ouvirão mais alto será sempre a voz do mestre.

Conta Manuel Bandeira que quando Álvaro Moreira foi tomar posse na Academia Brasileira de Letras, com 71 anos de idade, estavam todos na expectativa, aguardando seu discurso - "êle que em tôda sua vida nunca havia escrito uma linha de prosa".

"Álvaro Moreira não fêz nenhum discurso. Fêz poesia, do princípio ao fim. O que disse durante uns quarenta e cinco minutos, com aquêle seu talento de ator inato, foi uma sucessão de poemas".

Poeta, falou mais alto a sensibilidade do poeta.

3. O papel das Academias

O papel das academias não é, na atualidade, o que Champelain atribuía à Academia Francesa: "Fazer um grande dicionário e fiscalizar a língua". É mais importante, mais amplo e profundo.

O homem moderno vê-se muitas vêzes preterido pelas máquinas, vive cercado de computadores e botões, sente a ausência de valôres antigos que lhes eram caros e isto lhe trouxe melancolia e stress.

As academias precisam mais do que nunca exercer uma função ativa, renovadora de tendências, idéias e valôres, capaz de orientar a vida intelectual do País, imprimindo-lhe direção construtiva, fôrça e equilíbrio criador.

4. A Academia Brasileira de Letras

A iniciativa da fundação da Academia Brasileira de Letras deve-se ao escritor Lúcio de Mendonça. Nascida sob a invocação da Academia Francesa e por ela modelada, a Casa de Machado de Assis - seu primeiro presidente eleito - realizou a sessão preparatória inicial no dia 15 de dezembro de 1896, na sala de redação da Revista Brasileira. Os estatutos da instituição trazem a data de 28 de janeiro de 1897 e as assinaturas dos integrantes da primeira diretoria:

Machado de Assis

(Presidente)

Joaquim Nabuco

(Secretário-Geral)

Rodrigo Otávio

(1.0 Secretário)

Silva Ramos

(2. 0 Secretário)

Inglês de Sousa

(Tesoureiro)

Desde então a Academia Brasileira de Letras vem cumprindo sua finalidade: a cultura da língua e da literatura nacional. E o faz não apenas realizando regularmente suas reuniões semanais ou promovendo a publicação de importantes obras da literatura brasileira e premiando muitos de nossos melhores autores através de concursos anuais mas, sobretudo, servindo de guia e mestre às novas academias, renovando-se em cada uma delas, multiplicando sua ação, e, assim,

"bendita porque semeia

Livros. .. livros à mão-cheia ...

E manda o povo pensar!

O livro caindo n' alma

É gérmen - que faz a palma,

É chuva - que faz o mar."

"A humanidade está nervosa, e o melhor tratamento para essas doenças da inteligência e da sensibilidade é o livro", diz Alvaro Moreira. É preciso que os agitados que vão às farmácias dirijam-se às academias. Nelas, na palavra de Olavo Bilac, "os espíritos até certo ponto desencarnam-se das contingências materiais; nelas pensamos, sonhamos e nos confinamos na existência mental".

As rosas esquecem que têm espinhos e as abelhas que têm ferrão: nada mais favorável para uma biblioterapial Um médico de Paris fêz curas estupendas com receitas de romances, crônicas, impressões de viagens, poemas. Assim,

"Vós, que o templo das idéias

Largo - abris às multidões,

Pra o batismo luminoso

Das grandes revoluções

Fazei dêsse 'rei dos ventos'

- Ginete dos pensamentos

- Arauto da grande luz ... ".

5 . Seleção de Livros

Entretanto, companheiros acadêmicos, os sentimentos mais nobres ou os mais nocivos podem inspirar-se na leitura. Se é verdade que o livro influi poderosamente na formação do caráter e dos ideais, também o é que às vêzes constitui, por isso mesmo, um perigo.

Através da leitura, edifícios se levantam, mundos se criam, esperanças abotoam em nossos espíritos, sonhos são desfeitos. O poder sugestivo da leitura é grande. Forçoso torna-se portanto criteriosa seleção. "Aquêles que dizem com arrogância: eu posso ler tudo ou não são humanos ou são humanos demais ... ".

Contos policiais, romances históricos, novelas de aventuras, livros científicos, biografias, poesias. .. Há sempre um livro apropriado para tôdas as ocasiões e para tôdas as idades. O importante é saber escolhê-los. O provérbio "Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és" pode bem ser modificado para "Dize-me o que lês e dir-te-ei quem és".

Aqui, então, a voz do mestre levanta-se para encarecer a necessidade do incentivo ao desenvolvimento de bons hábitos de leitura para que se aprimore o idioma e o gôsto estético, para que bem se aproveite as horas de lazer e sobretudo para que se favoreça a aquisição de uma filosofia de vida sadia e otimista...

Acadêmicos e mestres, há que seguir o conselho de Coelho Neto:

"Aplica-te ao livro e poderás, um dia, erigir um pequenino edifício com os teus pensamentos e, ainda que o não ofereças à Humanidade, que exige obra forte, poderás dedicá-lo aos teus, mostrando-lhes, como exemplo, a tua vida ora feliz, ora nublada de tristeza, mas sempre pura, correndo sôbre a virtude".

6. A função do Mestre

A um só tempo Coelho Neto aconselha o estudo: "aplica-te ao livro ... " e a autenticidade: "poderás erigir um pequenino edifício com os teus pensamentos".

Sábia, a observação de Coelho Neto. Porém o que infelizmente ainda encontramos é o que o mesmo Coelho Neto ironiza em sua fábula A flauta e o sabiá:

Diz a flauta:

- "Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.

- Pois venha de lá êsse primor. Aqui estou para ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

- Isso agora não é possível.

- Não é possível? Por quê?

- Não está cá o artista.

- Que artista?

- o meu senhor, de cujos lábios sai o sôpro que se transforma em melodia. Sem êle, nada posso fazer.

- Ah! é assim?

- Pois como há de ser?

-Então, minha amiga - modéstia à parte - vivam os sabiás!

Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim, da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não sabem, se os não empurram. O sabiá voa e canta - vai à altura porque tem asas; gorjeia, porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos. Flautas... Flautas... cantam nos paços e nas catedrais ... pois vem daí a um dueto comigo. E, irônicamente, a tôda voz, põe-se a cantar o sabiá; e a flauta de prata no estojo de veludo ... moita! Faltava-lhe o sôpro".

E sabem por que isto acontece? Porque muitos mestres cuidam apenas de fornecer a seus alunos o sôpro com que pensam preparâ-los para a vida. Não procuram desenvolver-lhes e aprimorar-lhes as próprias potencialidades. Esquecem-se de que cada indivíduo é um, com características próprias, aptidões e interêsses diversos.

O mestre verdadeiramente sábio não conduzirá seus discípulos a entrar na mansão de seu saber, mas antes os conduzirá ao limiar de sua própria mente.

7. A formação do professor

O mestre verdadeiramente sábio procurará equipar-se para a sublime, porém difícil tarefa de fazer desabrochar personalidades autênticas.

Sabe-se que até há relativamente pouco tempo as funções de magistério não tinham destaque, não se exigindo para exercê-las preparo especial. Não havia propriamente mestres no sentido que se lhes dá hoje, isto é, de indivíduos preparados para exercer a profissão de professor...

A concepção que se tinha de aprendizagem era completamente diversa da que se tem hoje: a preocupação era a de fazer o aluno memorizar, palavra por palavra, um certo número de conceitos.

A mnemônica era a única arte pedagógica. Qualquer pessoa podia ser professor, bastava possuir um tratado do assunto que pretendia ensinar e transmitir, sem sistematização metodológica, utilizando-se muitas vêzes de recursos condenáveis, como, por exemplo, decorar livros.

Muitos de nós tivemos notícias ou até vivemos situações em que precisávamos repetir ipsis literis o que pretendiam nos ter ensinado para não recebermos puxões-de-orelha, exibirmo-nos com orelhas-de-burro ou vermos o aparecimento da santa-luzia, bonito nome com que designavam a palmatória.

Não era raro também a permanência dos alunos em pé, em cima de banco, ou no canto da sala com um dicionário em cada mão ou ainda com os joelhos em cima de caroços de milho...

Essas obsoletas formas de ensinar perduraram, como sistema, até o início de nosso século. Infelizmente, ainda hoje se encontram mestres que pensam haver necessidade da exibição de carrancas para manter autoridade sôbre seus alunos. Ainda hoje há professôres formalistas, graves e macilentos, que se julgam excelentes porque cumprem o programa e conseguem manter a classe disciplinada naquele conceito antigo: estática, silenciosa, apática. Não perceberam a evolução que se processou na arte de ensinar.

Não sentiram que o professor moderno deve ser capaz de ver à sua frente sêres humanos diversos ansiosos de vida, de compreensão, de amor. Não compreenderam ainda que sua tarefa é um influxo de sua personalidade sôbre a personalidade dos educandos e que por isso mesmo é necessário enriquecê-la para ter o que dar. Quem sabe amar, pode ensinar o amor; quem sabe compreender, pode inspirar compreensão; quem é tolerante, ensina tolerância e, por fim, quem sabe matemática, português, história ou o que fôr, pode levar o educando ao domínio da matemática, português, história ou o que fôr.

Com isso quero frisar que o que importa hoje não é tanto o que o aluno aprende, como êle aprende e com quem êle aprende.

Não pretendo desvalorizar o preparo técnico do professor e dizer que basta ao educador "a filosofia do carvoeiro (do carvoeiro que procurou abranger a vida com o seu amor e descobrir nela um sentido)". :mIe precisa saber o que vai ensinar, como fazer o ensino e sobretudo amar o seu trabalho porque é muito verdadeiro o que nos diz Gibran Khalil Gibran, poeta cheio da sabedoria oriental:

"O trabalho é o amor feito visível. E se não podeis trabalhar com amor, mas sOmente com desgôsto, melhor seria que abandonásseis vosso trabalho e vos sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles que trabalham com

alegria. Pois se cozerdes o pão com indiferença, cozereis um pão amargo, que satisfaz somente à metade da fome do homem. E se espremerdes a uva de má vontade, vossa má vontade se destilará no vinho como veneno. E ainda que canteis como os anjos, se não tiverdes amor ao canto, tapais o ouvido do homem às vozes de dia e às vozes da noite".

Com tudo isso quero frisar ainda a necessidade cada vez mais urgente de se cuidar da formação do professor. É necessário que o mestre tenha um bom conteúdo, isto é, saiba bem o que vai ensinar; domine as técnicas necessárias ao seu trabalho, isto é, saiba como fazer o ensino, procure o enriquecimento e o aperfeiçoamento de sua alma, e que tenha, antes de tudo isso, vocação para o magistério, o que importa no reconhecimento de que a formação do professor como profissional deveria ser precedida pela sondagem de sua vocação. Conforme diz muito bem Tagore "Um homem só ensina bem o que tem para êle poesia". Pouco adianta uma esmerada preparação nos demais aspectos: conteúdo, conhecimentos pedagógicos e técnicas didáticas se o professor não tiver vocação para o magistério. Note-se que há enorme diferença entre vocação, interêsse e conveniência. Sentir interêsse ou estar interessado por um trabalho significa apenas que êsse trabalho nos atrai, desperta nossa atenção e se nos apresenta como sendo possível de agradar-nos. Tudo isso, entretanto, pode não ter nada a ver com uma autêntica vocação profissional e ser proveniente de curiosidade ou de circunstâncias passageiras. Bastará que essas circunstâncias mudem para que se deixe de sentir tal interêsse.

Mira y López diz que "a diferença entre vocação e interêsse pode ser equiparada com a que existe entre amor e paixão: o primeiro é um estado d'alma que é capaz de resistir a tôdas as provações; no entanto, quase sempre se apresenta discreto, estável e puro; a segunda, ao contrário, é agitada, violenta e impulsiva, e por isso mesmo é instável, efêmera e, sobretudo, egoísta".

Quanto à chamada atitude de "conveniência", diz o insigne mestre, é sempre motivada por um incentivo ou estímulo artificial, de sorte que nunca é espontânea, não tem base sentimental ou afetiva e obedece a um simples cálculo de vantagens materiais. Não produz, por isso mesmo, satisfação íntima nem promove o sucesso na profissão escolhida em função dela.

Deve ser professor somente aquêle que sente constantemente a felicidade de influir na formação espiritual e intelectual dos outros; que faz viver em si a fé imperturbável no poder supremo dos valôres ilimitados do gênero humano. Para ter vocação de mestre é preciso que se possua paciência, serenidade, generosidade e uma plasticidade empática que lhe permita imaginar como percebe o aluno seus ensinamentos, ou seja, colocar-se no centro psíquico dêste e viver nêle as dificuldades do processo da aprendizagem.

A vocação do educador não pode ser avaliada pela execução regular dos seus deveres de rotina, de seu exemplo e de sua personalidade, sobretudo do ponto de vista espiritual.

Segundo acertada observação de Ruskin, "o objetivo final da verdadeira educação é levar o indivíduo não sOmente a fazer o que é direito, mas a amar o que é direito, não sõmente a ser hábil, mas a amar a habilidade; não somente a ser puro, mas a amar a pureza, não somente a ser justo, mas a ter sêde e fome de justiça". Só mestres possuidores de vocação autêntica são capazes de, pelo exemplo, atingir tal objetivo. O mestre pouco dá de sua sabedoria em relação ao muito que oferece de sua fé e de sua ternura.

Que dizer agora sôbre a necessidade de o mestre saber o que vai ensinar? As escolas normais e os institutos de educação desde muito vêm ministrando aos que os freqüentavam conhecimentos pedagógicos indispensáveis ao exercício do magistério do primeiro grau.

As faculdades de filosofia, que hoje vão sendo substituídas pelas de educação visam a preparar professôres e pesquisadores em nível de ensino do primeiro e segundo graus. Não bastam, porém, os conhecimentos adquiridos nos cursos universitários. O verdadeiro mestre tem ânsia de saber.

Compreende a necessidade de atualizar-se sempre; procura conhecer cada vez mais o conteúdo de sua matéria, a problemática do educando e cuida de aperfeiçoar as técnicas didáticas que emprega em sala de aula. Tem consciência de que tão importante quando saber o que ensinar e saber como ensinar, que embora sempre tenha tido papel relevante, hoje assumiu importância transcendental. As revistas cheias de ilustrações coloridas, o rádio, a televisão, os artistas preparados para a arte de comunicar são fortes concorrentes do mestre. Ele não pode desconhecer as técnicas da dinâmica de grupo, as técnicas de comunicação, os recursos audivisuais mais atualizados: slides, quadro-magnético, diafilmes, discos, laborató rios. O professor moderno precisa ser um artista e saber criar. A falta de recursos materiais não deve ser pretexto para um ensino estático, monótono, rotineiro.

Há sempre revistas de onde gravuras podem ser recortadas; um flanelógrafo pode ser confeccionado com um pedaço de pano; há aparelhos para utilização em aulas de física e química que podem ser fabricados pelos próprios alunos; a natureza oferece animais, vegetais e minerais que podem ser empregados em feirinhas de ciência; as técnicas de trabalho em equipes, painéis de discussão, círculo de estudo, juris simulados não necessitam de aparelhamento especial.

Eu diria até que o excesso de recursos materiais pode ser prejudicial. Não é conveniente o ensino em laboratórios cheios de aparelhos e computadores sem a cuidada orientação do mestre. A peça mais importante no processo da aprendizagem ainda é e sempre será o professor. O saber pode ser obtido nos livros, nos laboratórios, através da televisão, mas o amor ao saber só é transmitido pelo contato pessoal.

Por isso mesmo, o verdadeiro educador procura, antes de mais nada, o enriquecimento e o aperfeiçoamento de sua personalidade; depois o enriquecimento e o aperfeiçoamento intelectual, e ainda o enriquecimento e o aperfeiçoamento no domínio de técnicas didáticas e pedagógicas que o levem a melhor atingir seus educandos - o que põe em evidência a necessidade de êle conhecê-los para poder incentivá-los. Psicólogos que estudaram as leis da aprendizagem concluíram que as emoções têm papel importante no processo de aprender. Umas têm efeito de acelerar e estimular a assimilação de novos conhecimentos ou a formação de novas atitudes; outras provocam a inibição da aprendizagem.

Profissionais que entram em sala, fazem sua preleção, passam exercícios, atribuem notas às provas realizadas e desconhecem até o nome de seus alunos não merecem o nome de mestres. A educação é uma obra de amor, e não amamos o que desconhecemos.

Dizem que Sêneca, devolvendo o filho de um amigo que lhe fôra entregue para educar disse: "Devolvo-te o teu filho; nada pude fazer por êle, pois não me ama". Retorno ao que disse anteriormente: o mestre verdadeiramente sábio procurará equipar-se para a sublime, porém difícil tarefa de fazer desabrochar personalidades autênticas. Para isso é indispensável· que êle conheça a problemática de seus alunos, seus interêsses, suas aptidões, suas condições físicas, morais e até econômicas.

Citando novamente Gibran Khalil Gibran: "Nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento. (...) O músico poderá cantar para vós o ritmo que existe em todo o universo, mas não vos poderá dar o ouvido que capta a melodia, nem a voz que a repete (...) Porque a visão de um homem não empresta suas asas a outro homem".

Cada um é um e todos têm uma característica positiva mais acentuada. A missão dificílima, porém indispensável, do mestre é fazer com que cada aluno descubra a sua e a desenvolva e aperfeiçoe. A missão dificílima, porém indispensável do mestre é fazer com que o aluno compreenda e aceite a mensagem de Malloch: o melhor possível. Se você não puder ser um pinheiro no cume da montanha, Seja uma erva no vale - mas seja a melhor ervazinha à beira do riacho; Seja um arbusto, se não puder ser árvore. Não podemos todos ser capitães; temos que ser exército; Para todos há na Terra alguma coisa. Há muito trabalho a fazer e poucos trabalhadores e a tarefa a escolher é a mais próxima. Se você não pode ser a estrada real, seja então o atalho. Não podendo ser o Sol, seja uma estrêla. Em grandeza não é que se ganha ou perde. - Seja o melhor possível, aquilo que você é!

Senhores acadêmicos, embora possa parecer à primeira vista, não esqueci o patrono da cadeira em que me assentarei. Se êle estivesse em meu lugar, por certo diria o que eu disse, porque também êle deixaria prolongar aqui, como deixou em sua obra, a preferência do mestre e ouviríamos também dêle a voz do mestre falar mais alto.

8. José Veríssimo

Não se tratava de recurso de estilo a afirmação de que foi por ter sido José Veríssimo professor que não me poderia sentir melhor em tê-lo como patrono.

Aprecio mestres que não se limitam a repetir o que lhes foi ministrado e procuram novos caminhos, buscam objetivamente a reformulação de sistemas obsoletos adaptando-os às novas realidades.

Assim atuou no magistério o jovem paraense da cidade de Óbidos. Tendo sido obrigado a abandonar por motivo de saúde o curso de engenharia iniciado no Rio de Janeiro, voltou à cidade natal onde começou sua carreira jornalística e ingressou no serviço público.

Amor ao estudo, honestidade e coragem fizeram com que sua atuação como Diretor da Instrução Pública do Pará fôsse das mais profícuas. Renovou os métodos educacionais de seu estado e legou à posteridade uma rica experiência no campo educacional nas obras A instrução pública no estado do Pará e A instrução pública e a imprensa. Exerceu ainda oficialmente o magistério no Rio, onde foi professor da Escola Normal e diretor, durante alguns anos, do atual Colégio Pedro lI, então Ginásio Nacional, mantendo-se fiel aos princípios de seriedade no trabalho e autoridade intelectual e moral.

Disse oficialmente porque em tôda sua vida, em tôda. sua obra percebe-se a presença do professor. Seu espírito observador e um critério de objetividade e estudo meticuloso permitiram que êle retratasse em Quadros paraenses os costumes e as paisagens daquele estado brasileiro.

José Veríssimo iniciou-se na literatura como contista, fixando em Cenas da vida amazônica a riqueza do folclore amazonense com rara fidelidade, o que se pode observar até no vocabulário empregado do conto A lavadeira o trecho em que José Veríssimo narra uma das mais belas lendas de sua região natal.

E "O môço falou assim:

Ouve, mãe, ouve, porque só a ti posso contar a dor que me· vai n'alma. Era uma môça linda. .. como nunca vi nem entre as filhas Manaus, nem dos Mundurucus. Quando a igara vogava, ouvi canto longínquo, mais doce do que o do caraxué, mais terno o arrulho da juriti. Era dela. Estava sentada à margem do rio.

Tinha os cabelos côr de pedra amarela e nêle enlaçadas flôres do mururé e cantava como jamais ouvi cantar. Depois seus olhos, verdes como a pedra das icamiabas, fitaram-se em mim. Um momento olhou-me e em seguida estendeu-me os braços, e… o seu corpo, esbelto como o açaizeiro, mergulhou nas águas do igarapé, que resvalaram-lhe pelo dorso branco como as penas da garça. E o môço calou-se.

A velha ouviu, chorou e disse:

Não voltes, filho, não voltes ao igarapé do Tarumã. Essa virgem é a iara, a mãe-d'água. Seu sorriso mata como a flecha do guerreiro e sua voz é traidora como a pepeúna que se oculta nas fôlhas.

Filho, por Tupã, não voltes ao igarapé do Tarumã. A cabeça do môço inclinou-se sôbre o peito e êle ficou mudo. E no dia seguinte, quando o sol se punha, a igara cortava ligeira as águas do Tarumã.

O môço manau nela ia e não voltou mais à taba de seus pais. Não souberam mais dêle. Ousados pescadores contavam à noite, junto ao fogo da oca, que, ao passarem de volta de suas pescarias pelo igarapé do Tarumã, quando a noite vai alta, viam ao longe o vulto de uma mulher que cantava, e junto dela o de um guerreiro môço.

E se alguém mais atrevido se aproximava, as águas do rio abriam-se e os vultos desapareciam nelas".

Este e outros contos de José Veríssimo revelam o seu profundo senso nacionalista - qualidade indispensável ao verdadeiro mestre. Mas a relevante posição que José Verissimo ocupa na história da literatura brasileira é no setor da crítica, onde desenvolveu sua principal atividade e adquiriu nome e prestígio.

Muito valiosos foram-lhe neste aspecto de sua produção intelectual os dons de observação para fornecer dados precisos e espírito independente que o levava a apresentar com lisura as divergências doutrinãrias.

Não pretendo fazer um estudo minucioso da obra de José Veríssimo; quero antes mostrar a imagem Elo homem através de seu trabalho. A exaltação da verdade era uma de suas características marcantes. O que pensava dizia-o limpidamente. Quando Euclides da Cunha, nome inteiramente desconhecido em 1902, publicou Os sertões, Veríssimo arriscou todo seu prestígio de crítico para saudar no estreante um talento invulgar. Quando apareceram em livros os

versos de Maciel Monteiro, Veríssimo foi o primeiro a sair em campo para demonstrar que o renome do poeta não passava de um equivoco literário. O sentido da verdade primava no crítico acima de quaisquer sugestões apriorísticas. Seu espírito independente fazia-o reconhecer como verdade a sua verdade.

O mesmo Euclides da Cunha considerava José Veríssimo "um crítico de alto saber e competência, mas que gostava de roubar no pêso... " Ao que o apreciado respondeu: "Quanto ao saber e à competência, estou bem longe do que desejaria; quanto ao resto, trato de dar a cada um o que, pela balança de meu critério, êle pagou e mereceu". Por êste seu critério e rigor crítico sofreu reações. Peregrino Júnior qualificou-o de "pena carrancuda e sêca,a usar conta-gôtas para os adjetivos". Muitas outras restrições lhe foram feitas, no entanto o que se deveria apreciar era a sua coragem, a sua presença: a coragem e a presença do verdadeiro mestre.

Embora corresse o risco de afrontar opiniões poderosas, não se eximia de pronunciar-se sôbre qualquer assunto examinado. E assim como era nítido na enunciação de seus pensamentos, era honesto consigo mesmo e não se considerava infalível: retificava suas opiniões quando posteriormente as julgava erradas.

Ronald de Carvalho, uma das vozes autorizadas das correntes modernistas, formulou sôbre José Veríssimo a seguinte opinião:

"José Veríssimo tem uma qualidade fundamental, que ressalta de qualquer estudo seu, que estã em todos os seus conceitos, em tôda sua produção: a honestidade escrupulosa. Sua inteligência não tem requintes, seu estilo não tem opulência, mas não há um só comentário, seu, que não seja sincero, franco e objetivo. Ele amou e serviu às nossas letras, com independência, critério e boa vontade".

O amor aos jovens, a mão segura do mestre que estimula, que faz desabrochar personalidades pode ser sentida na observação de Aníbal Freire da Fonseca em conferência feita na Academia Brasileira de Letras:

"Entretanto José Veríssimo animava os moços e a prova concludente dêsses estímulos está na fase da Revista Brasileira, sob sua direção, em que novas inteligências floriram e vieram depois a consagrar-se definitivamente nas letras. O exemplo de Afrânio Peixoto é significativo para o critério objetivo a que o crítico se prendia. O nosso grande companheiro havia publicado Rosa mística, com a encenação gráfica que tanto ruído produziu na época.

A dedicatória do poeta, em tinta carmim, com os seguintes dizeres: 'J. A. dá esta rosa ao Sr. J. V., contentando-se em vê-la desfolhada por suas mãos de justo'. Tudo predispunha o crítico contra a obra. Mas o mestre teve a intuição do talento do jovem romancista, e, salientando embora os defeitos do livro, antevê a figura que tamanho realce exerceu nos nossos destinos literários".

Na exaltação do homem através de sua obra não poderia deixar de citar a profissão de fé com que José Veríssimo rematou o discurso de saudação a João Ribeiro na Academia de Letras: "Não há numa nacionalidade órgão mais essencial que a literatura, que é a expressão, superior às interferências da política e da história, da própria nacionalidade".

Em suma, senhores acadêmicos, é a obra de José Veríssimo séria, equilibrada e metódica que confirma a personalidade do mestre sério, equilibrado, metódico.

Sirva êle de estímulo e exemplo aos jovens que queiram trilhar o caminho árduo e pouco povoado da crítica literária séria, equilibrada e metódica.

Recitem para êle os que o quiserem seguir, o poema que Filinto de Almeida dedicou a Camões.

Este é o Mestre, êste é o Guia, êste é o que ensina,

Tomou-me pela mão na adolescência,

Deu-me os primeiros lumes na consciência,

Fêz-me a luz que ainda agora me ilumina;

Guiou-me pela estrada diamantina,

Transmitiu-me os avisos da experiência;

Abriu-me ao ar e ao sol a inteligência,

Mostrou-me a forma e a idéia peregrina;

Vulto humilde - segui-o a vida inteira;

Luz clara - êle o meu norte determina;

Soberba nau solar, vou-me na esteira.

E quando escrevo surge, repentina,

a sua augusta sombra sobranceira.

- Que ainda é o Mestre, ainda é o Guia, ainda é o que ensina.

 

Amaury Pereira Muniz

Cadeira nº 26 - Patronímica: José Veríssimo

15 de novembro de 1971


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