Discurso de posse de José El-Jaick



A impressão que tenho em mente
de que as manias de ler
e, bem pior, de escrever,
são meio coisa de louco,
não me veio de repente,
me veio, sim, pouco a pouco.

Livros, na infância, eu não lia.
Deles, o que conhecia
era o que ouvia dizer.
Comecei na adolescência
essa mania de ler,
em meio à efervescência,
como é norma nessa fase,
dos hormônios, dos passeios
na praça e nas piscinas,
ora de olho nas frases,
ora mirando as meninas,
e pouco a pouco me veio,
como inevitável sina,
esse negócio de louco.

O tempo me era estreito
pra ler o que aparecia.
Tive então que dar um jeito
de alimentar a mania.
Em vez de ir ao colégio,
ia ao Parque São Clemente.
Era quase um sacrilégio.
Matava as aulas pra ler
em completa solidão
e macabra compulsão.
Do Cêfel eu escapava
e no parque eu me amoitava
para ler sofregamente.
O que se pode dizer?
Atitude de demente.

Solidão e compulsão:
sinais certos de doideira.
Cabe lembrar o chavão:
selava-se o diagnóstico
de péssimo prognóstico.
Seria um mal de família?

Eu lia tudo que via
pela frente, sem critério.
Não respeitava fronteira
e tragava longas listas.
Brasileiros, portugueses,
franceses, italianos,
espanhóis, russos, ingleses,
alemães, americanos,
cristãos, judeus, muçulmanos,
budistas, confucionistas,
pra mim eram refrigério.

Pobre leitor, não sabia
que aquela matéria lida
de um jeito desassombrado
e pra lá de açodado,
como se ali não houvesse
nenhuma chave ou mistério,
teria de ser relida
se bem entender quisesse.
Eu me veria obrigado
a reler parte de tudo,
em parte ou completamente,
e dessa vez, calmamente,
e de um jeito mais sisudo,
para entender plenamente
a arte ali escondida.
Era coisa de endoidar.
Seria um mal do lugar?

Naquele tempo, o Paco,
um dos muitos descendentes
dos imigrantes de Espanha,
um dos muitos Ruiz,
de todos um amigaço,
prosador de muita manha,
com todos ria e falava,
além de tudo, gerente
do Bar e Sorveteria
Única, dali de frente,
o Paco, como eu dizia,
a todo mundo afirmava
verdade que ninguém diz:
que o clima tão decantado
de nossa amada cidade
é da melhor qualidade
para fêmea ou para macho
mas que seu bom resultado
é do pescoço pra baixo.
O Paco assim entendia
que o mal do clima atingia
a cabeça da pessoa.
Nem tanto à do visitante,
que curtia numa boa
o reles tempo passado
na Suíça Brasileira.
Não era o que acontecia
com o coitado do habitante,
aquele aquartelado
aqui, pela vida inteira.

Se ler muito é uma loucura,
o que podemos dizer
de quem se mete a escrever
boa ou má literatura?
Ferreira Gullar, poeta
da maior envergadura,
(confirmo a expressão batida),
diz que a literatura
precisa mudar a vida.
E não é voz solitária.
Com ele, uma legião
canta em coro, solidária.
Olhem só que pretensão!
Olhem só que ousada meta!
Com letras, mudar a vida
das pessoas desditosas
e das mal orientadas
ou apenas iludidas.
Mudar, inclusive, a vida
das pessoas venturosas.
Haja letras presunçosas!
Haja ideias variadas!
Haja fé e colossal
vontade no coração.
Com letras mudar o mundo
solapado em desmedida
miséria, fome e profundo
desajuste social,
dominado por potências
que visam só o dinheiro,
e suas intransigências
assolam o mundo inteiro.
Mudar a vida, o mundo,
com simples literatura!
Que mania de grandeza!
Outro sinal, com certeza,
de irreversível loucura.

Eis que surge um lenitivo,
uma espécie de incentivo
ao meu humor combalido:
entrar para a Academia.
Assim eu me tornaria,
embora doido varrido,
um venerado imortal.
Ah, nada mal, nada mal,
entrar para a Academia!
Soube que vaga estava
a cadeira dezenove.
Merecer, não merecia,
mas tentar não me custava.
Ah, o agrado que nos move!
A cadeira pertencera
a Henrique Braune Zamith,
o que pela vez primeira
a ocupou com maestria,
fato que a História admite:
ilustre compositor
do Hino de Barra Mansa,
além de grande escritor.
E a dezenove, por último
pertencera ao nosso Augusto
Carlos Curvello de Muros,
o nosso querido Muros
de tantas boas lembranças,
e nada há de mais justo
que saudar o bom cronista
e louvável romancista.

Entrar para a Academia!
Se entrasse nela, eu seria
imortal como os demais.
E essa imortalidade
é, da outra, diferente
em termos de qualidade
e sacrifício da gente.
A tal imortalidade
pelas letras nos é dada
(troço mais simples não há),
não pela vida regrada,
não por virtudes morais,
nem por espirituais,
difíceis de praticar.
Do próximo até que posso
sua mulher desejar.
De um outro roubar eu posso
uma ideia, um pensamento
e de algum jeito botar
aquilo, em qualquer momento,
no livro que estou fazendo,
e nada disso será
descontado no meu tempo.

Lancei a candidatura
à Casa que prometia,
por minha literatura,
amena imortalidade,
especial regalia
dada a poucos na cidade.
Fui aceito e fiquei grato.

Eis que surge um revertério.
Ninguém menos que Robério
José Canto, o Presidente,
com o tom de gravidade
usado no magistério,
me diz amigavelmente:
Meu prezado candidato,
me sinto na obrigação
de lhe revelar um fato,
incontestável verdade,
diferente de boatos
que pela cidade correm
sem a menor consistência.
Sinto-me na obrigação
de lhe avisar de antemão
que os imortais também morrem,
e aliás, com uma frequência,
ele disse, assustadora.

Notícia devastadora.
Vem na boca, o coração.
Coisa de louco, eu diria.
E quem aqui poderia
ter contrária opinião?

Mas o que posso fazer?
O que podemos fazer?
O planeta, maltratado;
o ser humano, aturdido;
nós aqui, por outro lado,
com o coração esprimido.
Loucura, a literatura,
disso já ninguém duvida.
Mas é o que nós fazemos
com artifícios que temos.
Feiticeiros, feiticeiras,
hóspedes do eterno espaço,
lá em cima, de mil maneiras,
planejamos, passo a passo,
mudar o mundo, a vida
com letras que enfileiramos,
tudo feito com cuidado,
cada dia mais e mais,
com vistas no resultado:
mudanças que desejamos
perenes e essenciais,
mesmo que enfim já saibamos
que somos simples mortais.

Boa noite e obrigado.

Nova Friburgo, 11 de março de 2016.

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