Discurso de posse de Nivea Corcino Locatelli Braga



Senhoras e senhores, boa noite!

À guisa de introdução, digo que é uma honra estar aqui nessa noite com pessoas tão importantes: autoridades, parentes, amigos, pessoas que dispuseram do segundo bem mais precioso que a vida, ou seja, que dispuseram de seu tempo, que deixaram o trabalho, o lazer e alguns que viajaram de locais distantes para presenciar este momento.

Agradeço aos benévolos acadêmicos, a toda diretoria da Academia na pessoa de sua Presidente Maria Janaína Botelho Corrêa que desde o início me tratou com muito profissionalismo, respeito e gentileza.

Agradeço também ao educador Jorge Carvalho pelo incentivo.

Pois bem, feito este intróito, acredito que não existe coincidência pura e simples, o que existe é continuidade, em outras palavras a “coincidência” se é que existe é sempre inteligente, guiada. Assim, estou ocupando a cadeira de número 25 que tem como patrono ninguém mais ninguém menos que José Carlos do Patrocínio, mais conhecido nos livros de História como José do Patrocínio.

Antes de abordar a existência ou não da coincidência, é preciso fazer uma pequena digressão, para dizer que a cadeira de número 25 pertenceu a duas figuras de destaque na vida intelectual de nosso país, nesse contexto, os antecessores imediatos foram: Wander Lourenço, poeta, escritor, romancista, roteirista e cinegrafista. Especializado na obra de Guimarães Rosa. E Dom Rafael Cifuentes, nascido na cidade do México em 18 de fevereiro de 1933. Dom Rafael se formou em direito pela Universidade de Salamanca em 1955, Universidade em que posteriormente obteve o doutorado. Em dezembro de 1959 doutorou-se em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino de Roma e ordenou-se sacerdote.Foi responsável por criar, na Coordenação da Pastoral da Juventude, os “Encontros Jovem-Rio” que aconteciam a cada dois anos, em união com o Papa nas Jornadas Mundiais da Juventude. Se tornou bispo emérito de Nova Friburgo, nomeado pelo Papa João Paulo II.

Dom Rafael além de ter sido um exímio escritor utilizou sua inteligência privilegiada para propagar o amor, a compaixão e assim atingir aqueles que procuravam formação cristã. Dom Rafael foi um grande nome da igreja de Nova Friburgo, do Brasil e do mundo. Faleceu aos 84 anos e deixou um legado de uma presença inefável.

E aqui reside à primeira coincidência que permeia como uma espécie de fio condutor, toda a trama histórica iniciada pelo Patrono da cadeira de número 25.

José do Patrocínio nasceu na Fazenda do Imbé, em Campos dos Goytacazes, norte fluminense, em 1853, filho de um padre João Carlos Monteiro com uma escrava negra Justina do Espírito Santo, José não teve sua paternidade reconhecida, porém esse fato ultrajante e sombrio de sua vida não o limitou, não foi capaz de detê-lo, não foi capaz de aviltá-lo, tão pouco foi capaz de vulnerabilizá-lo pelas circunstâncias genealógicas e sociais.

Ainda na adolescência, aquele pequeno menino de alma grande deixou o local onde nasceu em Campos para tentar a sorte na capital do Império, no Rio de Janeiro, onde começou trabalhando como servente de pedreiro na Santa Casa de Misericórdia. Ali mesmo deu continuação e custeou seus estudos, até concluir o curso superior em Farmácia, considerado “menor” dentro das atividades médicas e o máximo acessível aos mulatos e representantes de camadas mais pobres da população.

E, assim após várias intempéries, somadas ao seu drama de origem, qual seja, a desigualdade sentida na pele, José do Patrocínio se descobriu jornalista e começou a dar vazão aos discursos represados de uma vida inteira para lutar contra a escravidão, que a época, assolava o Brasil. Nesse cenário, a vocação nobre do abolicionista José do Patrocínio foi sendo exteriorizada e começou a ser densificada.

Em 1881, se tornou proprietário da Gazeta da Tarde, que comandou por seis anos, e posteriormente fundou outro jornal, chamado A Cidade do Rio.

Senhoras e senhores, José do Patrocínio fundou os jornais para lutar por uma causa que estava latente em suas veias, com o objetivo de livrar os cativos, de livrar as almas e os corpos da escravidão que açoitava as pessoas por conta da cor, da condição social lhes tirando o direito de viver de forma digna e plena. Nessa ambiência, José do Patrocínio dedicou sua vida para dar cumprimento a um dever ético que já estava sagrado em seu coração e entremeado em seu DNA. E mais, apesar de ter sido um abolicionista nato, diga-se de passagem, um dos maiores abolicionistas do Brasil, sua vida não se limitou (como se isso fosse pouco) a abolição da escravidão, ele também se compadeceu em relação aos: migrantes, as pessoas vítimas da seca do nordeste e as mulheres.

Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira de número 21 e foi sem sombra de dúvidas um dos maiores intelectuais do país.

José do Patrocínio morreu de forma precoce aos 51 anos de tuberculose, justamente quando escrevia um texto em defesa dos animais e no qual sugeria a criação de uma sociedade protetora.

Apresentadas, de forma breve, as biografias citadas, retomo como prometido nesse momento a temática da coincidência, acredito que coincidência é o universo usando algorítmos, é uma forma do universo possibilitar um encadeamento de ações, obras, atitudes, pensamentos e força motrizes de identidades, e no caso de hoje, a feliz coincidência se dá entre os ocupantes da cadeira 25.

Explico! O patrono da cadeira, José do Patrocínio que tanto lutou pelos vulneráveis, em especial pelos negros e que no final de sua vida nos idos do século IX defendia o respeito aos animais, demonstrando dessa forma seu amor e grandiosidade de alma, foi filho de um padre que não o reconheceu como filho.

É! A vida tem dessas coisas e tem o condão de nos surpreender, nessa ambiência, um dos antecessores imediatos da cadeira Dom Rafael como dito anteriormente, por ironia do destino foi justamente um padre, que pregava o amor acima de tudo.

Constata-se, que o destino uniu como imortais na academia de Letras Friburguense duas pessoas, numa espécie de resgate quanto ao amor e a produção intelectual de dois pensadores que marcaram época.

Voltando ao dia de hoje, me sinto honrada em ocupar nesse momento a cadeira que tem como número o dia do meu nascimento. Será esse fato também uma coincidência?

Olhando em retrospecto, verifico que a primeira pessoa que despertou em mim o gosto pelas letras, pela escrita, na acepção literal da palavra, foi minha saudosa mãe, que me alfabetizou e mesmo sendo humilde me matriculou em uma escola de música, o que permitiu minha formação em piano clássico. Batalhou conseguiu uma bolsa de estudos no Colégio Rio Branco, o que me permitiu cursar o primário em um Colégio particular na pacata cidade de Bom Jesus, também pertencente ao norte fluminense, perto de Campos dos Goytacazes, local em que nasceu José do Patrocínio.

Desde pequena tive o sonho de estudar e de defender as pessoas injustiçadas, a fim de trazer lhes algum alento.

Os anos foram passando e depois fui aprovada e cursei Direito na Universidade Federal Fluminense (salientando que Dom Rafael também se graduou em direito), ato seguinte comecei a advogar e anos depois comecei a lecionar a disciplina de Prática Jurídica e Organização Judiciária na Universidade Estácio de Sá. Durante 20 anos de trabalho na docência, ministrei aulas para mais de 100 turmas na graduação, além de ter coordenado duas Pós-Graduações lato sensu e de ter o coordenado o Núcleo de prática Jurídica.

Entretanto, o gosto diferenciado pela academia ocorreu ainda na fase do processo seletivo do Mestrado em direito público e evolução social. Foi ao ter contato com as obras de pensadores disruptivos do direito, da antropologia e da sociologia que encontrei uma de minhas vocações. E pasmem, meu projeto inicial no mestrado foi voltado para a linha de pesquisa destinada a análise do direito dos animais, ao estudo da senciência, sensibilidade essa que também (respeitados os diferentes contextos e épocas) foi experimentada por José do Patrocínio.

Durante minha trajetória acadêmica, cursei o doutorado em direito e optei por estudar e analisar um dos fenômenos mais bonitos e inevitáveis da vida: o envelhecimento, bem como seus impactos na tutela dos direitos humanos das pessoas idosas.

As coincidências vão se acumulando, José do Patrocínio tinha um trabalho voltado para os negros, Dom Rafael um trabalho voltado para os jovens, e eu tenho um trabalho voltado para as pessoas idosas, que na sociedade pós-moderna atual, no mundo líquido de laços frágeis, como ensina o filósofo prussiano Zygmunt Bauman ficam invisibilizadas, relegadas a um segundo plano, nessa sociedade hedonista que ama a novidade, o novo e o ineditismo e rechaça o que é velho.

E, é justamente nesse ponto que reside o epicentro das coincidências, o patrono e os já citados ocupantes da cadeira 25 tinham uma premissa em comum, qual seja, o respeito irrestrito à vida, ao ser humano, a compaixão, a coexistência consciente, para tutelar a humanidade que existe em cada um. Esse é o busílis da questão.

Voltando a temática dos idosos, verifica-se que eles em pleno século 21 são vítimas de idadismo, um tipo de preconceito baseado na idade, que tem contornos próximos com o racismo, preconceito baseado na raça.

Esse idadismo, etarismo ou gerontofobia, como preferirem não pode mais ter espaço no mundo atual.

Cabe relembrar que Cícero há mais de dois mil anos atrás já nos alertava que a vida segue um curso preciso e cada idade tem sua beleza. Passo a parafrasear Cícero:

“Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso preciso e a natureza dota cada idade de suas qualidades próprias. Por isso, a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.” (Cícero)

Ás vezes é preciso dizer o óbvio para desarmar as narrativas de ocasião. Não podemos nos sujeitar a nada que nos diminua, a nada que diminua o outro, enquanto sociedade consciente.

Feito esse olhar em retrospecto acredito que essa confluência de fatores me trouxe hoje a cadeira número 25 e assim agradeço aos meus antecessores e prometo trilhar o caminho da proteção aos vulneráveis e da escrita expositiva e disruptiva.

Agradeço a meu saudoso pai, Elias Lopes Locatelli, fonte de integridade, alegria, e amor incondicional pela família, foi através dele que pude perceber o mundo com mais doçura e leveza e nessa convivência pude apreender que a idade o apurou, o lapidou com maestria, e, assim pôde potencializar suas qualidades mais latentes: como o amor e a generosidade pela vida.

A minha mãe saudosa mãe Therezinha Corcino Locatelli que me outorgou a base moral e a garra para superar os obstáculos da vida.

Ao meu filho João Pedro Locatelli Braga, pelo simples fato de existir, pelo amor incondicional, pela leveza, gentileza, por saber ler às entrelinhas do que é dito e não dito, por saber captar a essência transmitida por um olhar, por ações ou pelo seu contrário, por saber ler o silêncio que às vezes é mais eloqüente que as palavras.

Agradeço, a meu marido Alex por tolerar minhas ausências e impaciências ao longo de minha trajetória acadêmica e ao meu amado irmão Deivid Corcino Locatelli por seu amor incondicional.

Para encerrar vou parafrasear Olavo Bilac ao prestar uma homenagem ao patrono da cadeira 25, com as seguintes palavras:

“O espírito do Redentor, ao despedir-se da existência, desenvolvia e apurava a sua capacidade de amar. Já não era somente o amor de uma faculdade. Já não era somente o amor de uma raça infeliz, que lhe enchia o coração, nem o amor somente de todos os homens: era o amor da vida,
amor de tudo quanto vibra e sente, de tudo quanto rasteja e voa, de tudo quanto nasce e morre”.

E nessa toada que deixo esta tribuna sabendo e conhecendo um pouco mais, e sinto me fortalecida pela vigorosa guarida recebida.

Muito obrigada a todos.

Nova Friburgo, 24 de março de 2023

Nivea Corcino Locatelli Braga

Cadeira n ° 25, Patronímica de José do Patrocínio

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