O universo do Jazz - O “background” africano - Parte II

King Oliver's Creole Jazz Band (1921)


Um ensaio de G.W. Cable, que viveu em New Orleans antes e depois da guerra civil americana, dá seu testemunho de que, pelo menos dezoito nomes de tribos e de localidades, atualmente com nomes modificados, podem ser citados como origem dos negros americanos.

Dessa enorme massa humana, submetida a um vigoroso processo de aculturação, emergiria o jazz, em menos de meio século.

Um dos fatores mais importantes a se observar é que a música e a musicalidade, entre estes povos primitivos, se constituíam numa espécie de argamassa social. Vale dizer, o africano de então não conhecia originalmente a música como uma manifestação isolada da “arte”,  utilizando-a quase sempre como uma função estritamente comunitária.

O canadense Ernest Borneman, um dos primeiros a lançar mão de critérios antropológicos para melhor explicar o fenômeno da música jazzística, relacionou pelo menos oito grupos básicos de canções observadas entre os negros africanos:

“1-De jovens fazendo a corte às moças. 
2-De mães para acalmar e educar os filhos.
3-De iniciação dos mais velhos para os mais jovens.
4-De líderes religiosos para impor respeito aos crentes.
5-De chefes para impor ordem à comunidade.
6-De guerreiros para adquirir coragem nas batalhas e amedrontar os inimigos.
7-De sacerdotes e curandeiros para influir sobre a natureza (fertilidade, chuvas, pragas, etc.).
8-De trabalhadores para cadenciar e suavizar suas tarefas.”

A variedade de canções é tamanha e tão diversificada que existiam algumas para finalidades inteiramente inusitadas, como por exemplo, para celebrar a perda de um dente de uma criança, outra para celebrar o recolhimento de uma rede cheia de peixes.

 Havia canções de elogio, como também de escárnio. O caráter vibrantemente vocal da música africana se transportou para o jazz, quando os negros entraram em contato com os instrumentos europeus que encontraram na América, principalmente os instrumentos de sopro, que mais se prestavam para a imitação da voz humana.

Sua submissão ao trabalho escravo e o fato de terem sido violentamente cerceados em seu desejo de construir instrumentos musicais assemelhados aos que conhecia na mãe África, por seus senhores e feitores ─ por medo de que fossem utilizados como código para incitação de revoltas ─ foram fatores determinantes para explicar a sua tradição vocal.

Os grandes espaços americanos, a exemplo do que já ocorria na África, passaram a repercutir o grito do negro, não como uma manifestação musical, mas como um meio de reconhecimento no ambiente hostil.

Eram os field hollers. Tais gritos primitivos, matéria bruta, aos poucos iam assumindo outros contornos e novas formas à medida que o africano absorvia e assimilava a cultura americana, particularmente os instrumentos europeus que lhes caiam às mãos,  e notadamente os de sopro.

A grande maioria dos negros vivia e morria no trabalho da plantação ou, em outros casos, para a indústria nascente, nas serrarias, nos engenhos e na construção das ferrovias, então em franca expansão.

A exemplo do que já acontecia no seu habitat africano, a música ritmava os trabalhos, cadenciando as machadadas, as marteladas, o içamento de cargas etc. Elas foram não só permitidas como também estimuladas, pois transmitiam tranqüilidade aos senhores e aos capatazes:

“O trabalho corria em ordem e
os negros pareciam contentes,
no seu devido lugar”.

Eram as “work-song”. Em alguns casos eram extremamente descritivas, como exemplifica Muggiati:

“Walk to the car, steady yourself.
Heag High!
Trow it away!
That’s just right.
Go back and get another one”.

(Vá até o carro, caminhe reto.
Cabeça erguida!
Agora pode largar!
Assim, muito bem.
Volte lá e pegue outro)

Outras canções obedeciam ao esquema de chamado-e-resposta, devidamente documentada numa prisão do sul dos Estados Unidos:

Leader:    I Wonder what’s the matter.
Workers:     Oh-o, Lawd.
Leader:    Well I wonder what’s the matter with my long time here.

(Feitor:    Eu me pergunto o que há de errado.
Trabalhadores: Oh, Senhor
Feitor:        Me pergunto o que há de errado com minha longa pena aqui.)

O citado esquema de chamado-e-resposta, denominado pelos especialistas como “responsorial” ou “antifonal” ocorreu de forma variada na música religiosa afro-americana, destacando-se principalmente as “gospel songs” (Gospel, significando Evangelho) e os “sprituals”.

No primeiro, uma mistura  dos hinos protestantes com as work-songs, os negros introduziram um ritmo fortemente sincopado acompanhado de palmas e batida dos pés.

Já os “sprituals”, eram eles entoados mais lentamente e de forma solene. Sua condição de escravos os identificava com o povo oprimido de Israel em sua luta pela libertação, como descreviam as Sagradas Escrituras.

Já com relação a aspectos mais profanos, outro dos gêneros que contribuiriam para a formação da música jazzística  eram os “minstrel shows”.

Nesses espetáculos podia-se encontrar uma miscelânia cultural integrada por acrobacias circenses, excentricidades musicais, paródias de Hamlet e imitações do cotidiano numa aldeia africana.
Destes shows se originaria o “cakewalk”, que apareceu inicialmente como uma sátira, uma imitação feita pelos negros à maneira afetada de andar dos brancos, transformando-se posteriormente, numa dança de sucesso.

O “cakewalk”, por sua vez, concorreria para o aparecimento do que foi um dos primeiros booms musicais do final do Século XIX: o “ragtime” (literalmente ragged time – ritmo rasgado, destruído), que tomou conta da América e depois do mundo, tornando-se a coqueluche da década de 1920.

Seu expoente, um dos seus criadores e primeiros compositores, foi Scott Joplim, e também um dos primeiros a se tornar mundialmente conhecido.

Diz-se que New Orleans foi o berço do jazz (esta não é uma verdade completa) pois alguns anos antes o ragtime já existia, e sua capital era Sedália, no Estado do Missouri.

Por essa razão é que Scott Joplim, pianista e compositor, nascido no Texas em 1868, para se lá se transferiu, tornando-se o líder dessa música que não tinha improvisação, elemento básico da música de jazz, mas que possuía um swing característico.

O ragtime era uma música do povo, do operário, particularmente daquele que trabalhava na construção das grandes vias férreas americanas, que à noite se reunia para ouvi-la. Curioso era que a música podia ser executada por pianistas “ao vivo”, como também por gravações em rolos de pianola , distribuídos por toda a região. E isso muitos anos antes da invenção do disco.

Alberto Lima Abib

Alberto Lima Abib – Nascido em Duas Barras(RJ), é descendentes de famílias portuguesas, libanesas e suíças. Economista aposentado do Banco Central do Brasil, foi diretor de empresas governamentais brasileiras no exterior. É membro da ACADEMIA FRIBURGUENSE DE LETRAS – AFL, da SOCIÉTÉ FRIBOURGEOISE DES ÉCRIVAINS – SFE, (de Fribourg, Suíça), da SOCIÉTÉ D’HISTOIRE DU CANTON DE FRIBOURG (Suíça), e membro do CBG-COLÉGIO
BRASILEIRO DE GENEALOGIA.

Comentários